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"ESTÁ NA HORA DA HOMEOPATIA"


Por: Sibéria de Menezes Carvalho

Ontem, no Teatro do SESC Crato, assisti à peça “Perdoa-me por me traíres”, texto de Nelson Rodrigues e deixemos outras localizações pra depois. A platéia, e eu também, que estava na platéia, riu algumas vezes em que a personagem da Tia Odete repetia: “Está na hora da homeopatia”. A personagem de uma frase só foi para mim a mais simbólica.
Não sou muito boa em enumerações, mas, vamos lá. O primeiro ponto que há de justificar o meu estado de encantamento com tal personagem deve-se ao fato do semi-silêncio no qual ela apreende, compreende, depreende da vida. Todo o mundo pode ser dito naquelas poucas palavras que repete. O silêncio muitas vezes pode representar mais que palavras. Há momentos em que as palavras são demais, ou que nenhuma delas encontra razão de ser. A frase era um silêncio retumbante. Aquele em que se acha um jeito de anestesiar-se perante a realidade dura e/ou incompreensível. Naquele onde o conforto da existência estabelece-se de modo absurdo. “Está na hora da homeopatia”. Talvez um mantra, um modo de deixar as coisas como estão, de reconhecer o pouco poder para chegar a um estado de libertação. “Está na hora da homeopatia”. Não ria. Não deveríamos ter rido no momento crucial do espetáculo. A personagem não tinha face, seu corpo não tinha um formato nem cor; era apenas coberto por uma veste branca de um tecido como se quisesse mostrar e não tivesse o quê, intencionalmente fazia-nos supor não o quê estava por baixo das vestes, mas quem. Quem encontraria significado na vida repetindo as mesmas palavras? Quanto de nós vem à superfície quando repetimos as mesmas sentenças?  Porque o nome da frase, segundo a gramática, é sentença. Nossa sentença é o que nos marca nesse mundo. Qual tem sido a tua sentença? E a minha? Qual loucura temos repetido sem cessar? A sentença, noutro sentido, é a nossa pena, aquilo de que não podemos fugir, é o destino. Estariam diretamente ligados os conceitos de sentença, em que o que dizemos constrói necessariamente aquilo que é nosso destino? E repito: qual tem sido a nossa sentença?
O segundo ponto é o da afirmação em si: “Está na hora da homeopatia”. Na Wikipedia[1]: “(...) o tratamento homeopático consiste em fornecer a um paciente sintomático doses extremamente diluídas de compostos que são tidos como causas em pessoas saudáveis dos sintomas que pretendem contrariar, mas potencializados através de técnicas de diluição,dinamização e sucussão que liberam energia.Desse modo, o sistema de cura natural da pessoa seria estimulado a estabelecer uma reação de restauração da saúde por suas próprias forças, de dentro para fora. Este tratamento é para a pessoa como um todo e não somente para a doença”. Até então nunca tinha sabido quão poética seria a palavra homeopatia. Pelo que entendi, e não quero entrar no campo da medicina, do qual muito pouco sei, mas tentando jogar uma luz filosófica na palavra, a homeopatia seria a nossa cura alcançada pela prova e exercício daquilo que mais nos atormenta. O indivíduo busca pelas suas próprias forças àquilo que lhe é essencial e essa busca, uma vez sendo “de dentro para fora”, põe qualquer um em estado de solidão necessária, considerando que o outro, dentro de mim mesmo pode me provocar, mas não pode me redimir. É o mais puro livre arbítrio. A redenção é impossível se não for homeopática, se não for inteira. Assim, toda hora “é hora da homeopatia”.
No mais, com uma frase só, encantou-me a catarse: “Está na hora da homeopatia”. Obrigada Nelson. Parabéns pela maravilhosa atuação Engenharia Cênica, especialmente a de Rita Cidade.

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